Camus ano 97

Sabia que milhões de olhos haviam contemplado essa mesma paisagem, que para mim era como se fosse o primeiro sorriso do céu. Estava fora de mim, no sentido profundo da expressão. Assegurava-me de que, sem o meu amor e sem esse belo grito de pedra, tudo era inútil. O mundo é belo e fora dele não há bem-aventurança eterna. A grande verdade, que essa paisagem pacientemente me ensinava, é que o espírito nada significa, como tampouco o próprio coração. E que a pedra aquecida pelo sol ou o cipreste que o céu descoberto faz aumentar de tamanho limitam o único universo onde “ter razão” adquire um sentido: a natureza sem homens. E este mundo me aniquila. Leva-me ao fim. Nega-me, sem cólera. Na noite que caía sobre os campos florentinos, encaminhava-me para uma sabedoria onde tudo já estaria conquistado, se não fossem as lágrimas que me vieram aos olhos e se o imenso soluço de poesia que me inundava todo não me tivesse feito esquecer a verdade do mundo.
Albert Camus, “O deserto”, in Núpcias, trad. Vera Queiroz da Costa e Silva.

“Odeio minha época”, escrevia Saint-Exupéry, antes de sua morte, por motivos não muito distantes daqueles que aqui mencionei anteriormente. No entanto, esse grito, por mais perturbador que nos possa parecer justamente porque partiu dele, que tanto amou os homens em tudo aquilo que possuem de admirável, jamais nos levará a qualquer sentimento de responsabilidade. Que tentação, no entanto, em certos momentos, a de dar as costas a este mundo sombrio e árido! Mas esta é a nossa época e não podemos viver odiando-nos uns aos outros. Se ela decaiu tanto, não foi apenas pelo excesso de suas virtudes, mas também pela grandeza de seus defeitos. Lutaremos por aquela, dentre suas virtudes, que vem de longe. Qual virtude? Os cavalos de Pátroclo choram a morte de seu dono na batalha. Tudo está perdido. Mas o combate recomeça com Aquiles e a vitória é obtida no final, porque a amizade acabara de ser assassinada: a amizade é uma virtude.
Albert Camus, “O exílio de Helena”, in O verão, trad. Vera Queiroz da Costa e Silva.

Hoje, o autor completaria 96 anos.

Um comentário:

mcris disse...

Da sua primeira citação, que guarda tantas palavras e expressões-valise, escolho abrir esta:

"belo grito de pedra"

e, uma vez lá dentro, descubro que o movimento da luz natural sobre os ciprestes e as oliveiras marca a respiração da terra... e ela é pura música!

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