Linha de base

Solidão é o frio através dessa roupa espessa que me protegeria do mundo se o mundo não fosse habitado de criaturas tão magníficas, a cria fabulosa de macacos capazes de lançar palavras que abatem corações e artefatos que nos libertam finalmente da gravidade. Nós temos conversa mole de desenganar moça e sabemos o suficiente de balística para viajar a outros planetas. Isso é parte de nossa carne. Amostra de nossos poderes e de nossas misérias.

Quanta febre tive, quantos versos eu repetia sozinho apenas para dizer melhor a ela, para afogá-la melhor no desejo sem conversa, na bebedeira de nossos encontros, no suor monótono de suas sardas, assoladas por nossos esforços como produtores de rum sob tempestades atlânticas. Depois, a gratidão irracional que sublimava da carne, brotando do espírito rampante, como se houvesse sentido em ser feliz por ser o que se é. Como se houvesse sentido em crer especial uma experiência comum milhões de gerações antes daquele casal que o dia descobria mais uma vez, diante das águas sem fim. Como se amar fizesse sentido.

Mais além das expectativas de sobrevivência e dos confortos acessórios, erguidos sobre colunas fulgurantes, mas desta vez não pelo querubim das histórias, vimos subir para longe de nossos jardins os intrépidos astronautas, e com eles flagramos a rosa mística. Nossos iguais subiram aos céus em máquinas incríveis, para descobrir que ela estava embaixo, gloriosamente mutante, embaixo, sob nossos pés. Temor e tremor bem de perto, mas em voo, graça plena, prazer verdadeiro, delícia sutil.

Se sobrevivemos ao nascimento tempo bastante para que os hormônios façam efeito, inquietos estaremos até repousar em regaço suave, para matar a sede ou entregar o espírito depois de sofrer o suficiente. Diz o roteiro.

Percorrer um caminho me faz acreditar nele, faz com que eu ache o mundo, a leste e oeste das margens, tão real quanto a trilha em que me persigo. Tudo o que eu fazia era para me perder do mundo e ler, volume após volume, sem dizer uma palavra a mais do que o preciso, sem gastar o tempo dos olhos nos olhos de outros animais, sem trabalhar mais do que os centavos contados para viver a miséria de cada dia. Eu ardia na fome de me confundir, pôr fim em todas as lembranças, uma a uma, e ter no lugar apenas as perguntas de outros homens e suas respostas brilhantes, as histórias sem fim de personagens que fossem reais, mais do que as ilusões que compunham a paisagem obscura de meu quarto e que respondia por minha personalidade.

Desde que as noites se tornaram frias demais para mim, eu sofro como um relógio. Quero dormir e não chega a hora. Sim, fechar os olhos e num instante fazer as horas invisíveis, para reabri-los um instante depois com as mesmas preocupações de existir, sem as originalidades que me fazem sofrer tanto quando os trabalhos da jornada se extinguem sob minhas mãos e não tenho mais nada a fazer, mais ninguém a servir.

Sinto frio através da roupa espessa, mas o mundo lá fora me sufoca.

Todos os dias, acordo com o sol que passa pelas frestas da janela. Abro as folhas para ver o tempo e saber como será o dia. Vai fazer calor, como foi na lua nova e como será nos próximos dez mil meses. Ao menos as chuvas vêm enfraquecendo, quase posso ver as praias se formarem no rio mais uma vez, e mais uma vez chegarem os turistas para as festas noturnas e os bares onde as mesas de metal ficam com os pés n'água e os amigos, da mesma forma, aproveitam a cerveja gelada e o peixe frito que pouco antes se escondia na corrente cor de terra.

Mas vejo o futuro, só teremos esse lazer daqui a semanas. Antes teremos as festas dos santos milagreiros, que enlaçam os homens às iaras em sagrado matrimônio e libertam os escravos nas histórias magníficas, atividades contraditórias que nem a teologia bem-educada do padre consegue explicar.

O rio fica à distância de um cigarro. Nesta época, o tamanho dos barcos que nos ligam às cidades vizinhas diminui à medida que aumenta a altura das margens. Logo terei de usar as escadas para receber os livros encomendados ou partir, às vezes, para as vilas vizinhas, horas acima ou abaixo no rio. Mas não consigo esquecer como eram as outras terras, além da estrada pré-histórica, a série cuidadosamente disposta de crateras que liga o posto avançado ao resto do país.

Além do espaço que posso cobrir com um dia de caminhada, está o mundo, em todas as direções. Tudo que conheço dele hoje forma uma coleção de paisagens imaginárias. Num canto, lá está, com jeito de cartão-postal de cidade grande, uma estátua em bronze suja e esverdeada numa praça antiga com nome de santo. Era profana demais para estar ali. Como era viver todos os dias com essa visão? Metal, concreto, pedra e fuligem. Eu poderia sonhar com isso. Eu queria ter sonhado apenas. Percorrer as ruas, aprender com os pés os caminhos que tanta gente usa para correr aos seus amores ou obedecer ao patrão, reencontrar o que posso ter vivido ali e que tinha se perdido entre lembranças mais urgentes. É hora de tomar café. Talvez isso me traga de volta ao normal. Um dia.

Tenho sobre o fogão uma gravura da esfinge. Injeto nela os olhos enquanto trago o caldo preto. O objetivo é me resgatar do desespero das lembranças e das emoções de todos os tempos que se compactam nos minutos entre sair da cama e despertar, os pensamentos disparatados que se multiplicam em meu pobre corpo, como num bebê louco por um bom seio. Segundo a teoria. Devo esperar com paciência, até que astronautas, amantes e melancolias se dissolvam diante de mim e eu perceba o mundo como espaço, as expectativas como tempo, existir e sofrer como causa e efeito, e as coisas visíveis e invisíveis como objetos. Em silêncio, "eu" vibra na garganta, "eu sou", e meu nome, diante da mulher com as partes de leoa, ícone do caminho, da verdade e da vida na seita dos caçadores do lapso, uma doutrina já senhora, ou melhor, secular, que congrega os felizes desbravadores do nada. Quando a sua catequese começou a se aplicar nesse continente, o diabo, que fazia um bico de revisor na sociedade, inspirou o tradutor dos textos sagrados a se desapegar do dicionário e confiar mais em si mesmo. Por isso o movimento ficou conhecido no país como solipsismo, e seu objetivo era estudar o desenvolvimento normal e patológico do solecismo. Acharam graça do caso, sentiram como se diante de si um escorpião se empalasse com o próprio aguilhão, ou melhor, como prova da doutrina.

Desperto, portanto, através da zombaria de mim mesmo. Abandono então a esfinge, porque em seguida seria lembrar de patricidas capengas e desejar mamãe, o que é inútil, já que no momento não vejo nenhuma moça disposta a me receber no colo nu. Para deixar o sono e declarar-me consciente, devo rir da mesma piada todas as manhãs, para esquecer essa história rapidamente e substituí-la por tudo o que preparei para me comandar em mais um dia.

Faz dez anos que vivo refugiado neste posto avançado. Tenho me concentrado em envelhecer, mas ainda não tive sucesso. Exorcizar de mim os sete demônios que me confundem e me fazem rir às vezes. Sim, dominarei todas as ilusões da consciência, inclusive eu, ao entregar cada pulsação de minhas células sob a regência de tudo que não sou. Eu me dissolverei. Anseio por isso desde que não sinto mais a sensação suave de mim coincidir com minha pele aquecida sobre as sardas da sibila.

O café me leva a tirar as roupas excessivas que me cobriram em mais uma noite difícil, trêmula, monstruosa. O calor já é suficiente para que minhas lágrimas se misturem a grossas gotas de suor. É a ruiva, como me ensinou a chamar essas manhãs o Lume das Estepes, um velho guarani que sempre viveu com os brancos e inventou esse nome por afeição aos apaches. Era devoto de São Jorge, e vestia o santo com roupinha de Gerônimo, duplicando sua devoção e os efeitos da providência. O caso é que mostrava gosto especial pela língua portuguesa, e se eu fosse médium lhe diagnosticaria como alma desgarrada da santa terrinha e encarnada no endereço errado. Cavalo-de-santo ou não, o dia, que sempre começava amulherado, agora era ainda mais específico. Então aurora é ruiva. Assim seja, quero encontrá-la muitas vezes sem cansar.

O Lume era o próximo passo da sequência amarrada que me conduzia da cama à cama num ciclo cada vez mais perfeito, despertar, trabalhar, dormir, todos os dias. Ele era o meu primeiro cliente da jornada. Paciente talvez, alvo ou vítima, aluno, mais um intrépido crente de si mesmo e de que é possível saber e até falar alguma coisa do mundo. Sou pago para ajudá-lo a superar suas próprias expectativas, já que ninguém esperava nada mais dele nem de meus outros alunos. Também serei pago se pelo menos orientá-lo a dizer as próprias convicções com começo, meio e fim, sem ir nem um milímetro além da aquisição do vocabulário necessário para passar pelos testes dos círculos sociais que lhe valeriam o carimbo de sabido o bastante para sentar-se nos sofás das melhores rodas da pálida sociedade que reluz nas metrópoles esfumaçadas longe daqui.

Mais café, alguma roupa, bicicleta e paciência. Devo chegar ao Lume antes que tenha a ideia de passar em minha casa para me tirar o sossego e exigir meu trabalho além do que eu aguento. Ele já estará lá, na escola, na outra ponta da vila, e vai ser chegar e imediatamente acelerar os miolos à toda, pra entender tudo direito dessas ideias tão distantes do meu corpo, do meu amor, da saudade da sibila, do ilhéu que o mundo todo é quando ela está longe.

Nosso trabalho começou pelo teste em si. O objetivo se transformou rapidamente em objeto de estudo. "É, agora eu entendo o dilema do ginecologista", ele dizia às vezes, já mergulhado na cerveja e carregando nas piadas grossas para disfarçar os seus problemas. Foi incrível como absorveu em poucos meses técnicas e teorias que costumavam se mostrar inférteis e duras para estudantes dedicados; ele as devorava por mera curiosidade, viver sua vida toda com ou sem elas não teria mudado o peso de sua alma, mas ele avançava, página por página, como se seus olhos avermelhados fossem o dispositivo exterior de um artefato oculto sob a pele, com engrenagens, roldanas, giroscópios e pêndulos, o motor que transformava um combustível invisível, o capricho, em leitura e cogitações.

- Pela carteira vermelha, faço até caridade. Sabe? Daquela cor do carpete que pregam na parede do cinema. É bonito de ver.

Brinquedos. As fichas que regem as cidades e seus cidadãos hoje são quase isso. Como no presídio em que os pontos de bom comportamento são motivo de orgulho e redenção, como se viver no limbo fosse melhor que o inferno em si. Talvez seja. Conheci um italiano que me garantia ter os melhores gregos da história instalados ali para sempre, entre os bebês sem batismo. Afinal, o que mais podiam desejar?

Funciona assim, ó, você, que ainda não percebeu que está num país moderno. Todos os espaços públicos são hoje controlados, e com eles um por um de cada símio humano identificado como cidadão. O direito de ir e vir, tão bonito nos papéis antigos, foi logo posto de lado por impraticável e contraditório com o direito à propriedade, diante do mundo real. Então quem tinha o que agarrar não ligou quando se instituiu a circulação controlada pelos cartões dos círculos sociais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário